Uma das desigualdades mais evidentes, enraizadas e transversais do sistema patriarcal é a assimetria na realização do trabalho doméstico e na prestação de cuidados a ascendentes e descendentes, pese o fato de termos vivido nas últimas décadas uma evolução a este nível, que resulta, apesar de tudo, em significativas diferenças geracionais e sociais.
As soluções encontradas por uma parte significativa dos casais heterossexuais, principalmente de classe média, que passam, em larga medida, pela externalização destas funções, é claramente insuficiente: (1) é fortemente baseada na contratação massiva de mulheres trabalhadoras (empregadas domésticas, amas, trabalhadoras de creches e infantários) em condições geralmente extremamente precárias e indignas; (2), promove uma institucionalização precoce das crianças com consequências penalizadoras para o desenvolvimento infantil; (3) tende a minorar mas não solucionar o problema: as mulheres continuam a assumir a maior parte da carga de gestão da unidade doméstica e isso continua a afetar negativamente a sua vida profissional.
Por outro lado, a tendência, inclusive nalguns setores do feminismo, de interrupção da vida profissional para prestação de cuidados aos filhos, cria uma profunda assimetria económica no seio do casal e uma dependência financeira da mulher que se traduz na impossibilidade de autonomização, mesmo em contextos de violência declarada.
Este diagnóstico torna visível que a solução deste problema passa por uma revolução mais profunda na nossa propria relação com o mundo do trabalho e com o espaço privado da família, libertando-nos de alguns pressupostos fundamentais do capitalismo. Algumas coisas que urge fazer:
1. Destruição da hierarquia de valores que coloca o trabalho assalariado como atividade produtora de valor, por contraponto ao trabalho doméstico e à prestação de cuidados, vistas como atividades menores e complementares, da esfera privada.
2. Atribuição de condições laborais e remuneratórias justas e equiparadas a todos os setores laborais, sejam de serviços ou produção.
3. Abandono da figura ideal-tipica do bom trabalhador, construída à imagem do trabalhador (homem) que pode construir uma carreira sem interrupções, licenças nem ausências para apoio a família.
4. Reconhecimento das unidades domésticas como unidades de produção e atribuição de valor ao trabalho doméstico, mediante, por exemplo, a atribuição de remuneração fixa ou de licenças extensas pagas para cuidados à primeira infância ou a qualquer outro dependente, a pessoas de qualquer género que cumpram estas funções.
5. Abandono do fetichismo pelas longas horas de trabalho e pelos horários fixos, proporcionando a todos os trabalhadores e trabalhadoras horários sempre que possível flexíveis e que lhes permitam ter tempo para gerir outros contextos de trabalho.
6. Desconstrução dos papéis de género que atribuem à esmagadora maioria das mulheres umas dupla jornada de trabalho e uma responsabilidade acrescida pela gestão da unidade doméstica.
7. Criação de estruturas coletivizadas de prestação de serviços neste âmbito, acessíveis de forma flexível a toda a gente, e geridas pelos trabalhadores e trabalhadoras, que, no caso dos cuidados à infância e terceira idade devem assegurar um rácio razoável de cuidadores/as por utilizador/a, entre outras condições básicas materiais e emocionais.
Sem este tipo de mudança social, verdadeiramente revolucionária, nunca conseguiremos mais do que empurrar o problema de uns setores da sociedade para outros, em processos de autonomização fictícios construídos à custa da liberdade e autonomia da outra: mulheres, crianças, idosos, trabalhadoras dos serviços...
[Daenerys]